sábado, 3 de setembro de 2011

 

Intervenção de António Filipe na Assembleia de República





Serviços de Informações não podem violar direitos constitucionais dos cidadãos



Declaração política
António Filipe

31/08/2011

Senhora Presidente,

Senhoras e Senhores Deputados,

Os Serviços de Informações da República estão de novo na agenda política pelas piores razões. Não é a primeira nem a segunda vez que a credibilidade destes Serviços é posta em causa na praça pública, mas nos últimos meses, as notícias vindas a público através da comunicação social quanto a actuações ilegais e ilegítimas por parte do Serviço de Informações Estratégicas de Defesa sucedem-se e assumem particular gravidade.
Primeiro foram as notícias de que o SIED, em vez de trabalhar única e exclusivamente ao Serviço do Estado Português, trabalhava para empresas privadas, fornecendo-lhes informações estratégicas para a sua internacionalização. Depois, foi a transferência do Director do SIED para a empresa Ongoing, levando para a actividade empresarial um conhecimento e uma experiência de mais de duas décadas nos Serviços de Informações. Depois, foi a notícia de que o mesmo ex-Director, após a sua transferência para o mundo empresarial, terá mantido um relacionamento ilegal com os Serviços de Informações que configura no mínimo, conforme foi publicamente admitido pelo Conselho de Fiscalização do SIRP, uma violação de deveres funcionais. Agora, no epicentro de uma turbulência relacionada com eventuais danças de cadeiras lamentável mas recorrentemente associadas à alternância dos partidos da troika no exercício do poder, somos confrontados com a notícia de que o SIED se ocupou em devassar ilegalmente as comunicações telefónicas do jornalista Nuno Simas com o propósito de detectar eventuais fugas de informação de dentro dos próprios Serviços.
Tudo isto, mas muito especialmente este último facto, ultrapassa os limites do tolerável e exige da parte das instituições democráticas uma atitude firme de defesa do Estado de Direito e dos direitos fundamentais dos cidadãos.
Temos de ser muito claros a este respeito, e dizer três coisas.
Há que dizer em primeiro lugar, o óbvio: os Serviços de Informações não podem, em caso algum, ter acesso a dados de comunicações telefónicas dos cidadãos. Essa prerrogativa é exclusiva das autoridades judiciárias em processo criminal e reveste particulares cuidados de adequação e controlo. Se os Serviços de Informações, como tudo indica, tiveram acesso aos dados telefónicos do jornalista Nuno Simas, estamos não apenas perante uma ilegalidade cometida por esses Serviços, mas perante um ilícito criminal que não pode deixar de ser investigado e cujos autores não podem deixar de ser responsabilizados até às últimas consequências. Está em causa a idoneidade dos Serviços de Informações; está em causa a privacidade dos cidadãos; está em causa a liberdade de imprensa; está em causa a credibilidade do Estado Democrático.
Em segundo lugar, este escândalo tem de ser cabalmente esclarecido perante o país com total transparência e não é legítimo invocar o secretismo inerente aos Serviços de Informações para ocultar actuações ilegais desses Serviços. A actividade de recolha de informações e as informações recolhidas no âmbito dessa actividade estão a coberto do Segredo de Estado. Mas a garantia dos cidadãos de que os Serviços de Informações não recorrem a métodos ilegais e não incorrem em actuações violadoras dos direitos fundamentais dos cidadãos, tem de ser dada com toda a transparência.
Perante tudo o que estamos assistir, não há hoje um único cidadão português que ponha as mãos no fogo pela legalidade da actuação dos Serviços de Informações e esse problema só é resolúvel se houver um esclarecimento público cabal sobre as ilegalidade cometidas e se forem criados mecanismos que garantam com razoável segurança que tais ilegalidades não se repitam no futuro.
A este respeito, os indícios não são animadores. A recusa do Primeiro Ministro em facultar à Assembleia da República as conclusões da averiguação que solicitou sobre o caso que envolve o ex-director Silva Carvalho, com a invocação do Segredo de Estado, e a recusa pelos partidos da maioria em fazer depender a audição do Secretário Geral do SIRP e do Director do SIED da conclusão de averiguações cujas conclusões serão provavelmente ocultadas com igual invocação do Segredo de Estado, são péssimos sinais quanto a uma real vontade política de esclarecer todos estes casos.
Existe hoje a convicção fundada dos cidadãos de que os Serviços de Informações não respeitam a lei e funcionam em roda livre com a “complacência activa” do poder político (para usar uma expressão ontem inventada pelo Ministro da Defesa Nacional). Perante uma situação destas, a obrigação das instituições democráticas é mostrar claramente que o seu propósito é defender os cidadãos de práticas ilegais dos Serviços e não defender os Serviços do escrutínio democrático dos cidadãos.
Em terceiro lugar, é preciso dizer que estes factos demonstram a absoluta falência do modelo de fiscalização dos Serviços de Informações que a troika partidária PS/PSD/CDS instituiu. Não há nesta afirmação qualquer processo de intenções ou qualquer juízo de valor quanto à idoneidade pessoal de quem, ao longo dos anos, tem vindo a integrar o Conselho de Fiscalização do SIRP. O que dizemos é que o modelo de fiscalização instituído está muito longe de garantir ao Parlamento os meios de intervenção necessários para investigar denúncias de actuações ilegais dos Serviços de Informações e para prevenir a ocorrência de tais factos.
Se perante a denúncia de que os Serviços de Informações devassaram as comunicações telefónicas de um cidadão, jornalista, sem que o Conselho de Fiscalização tenha podido detectar tamanha ilegalidade, a Assembleia da República se vê impedida de esclarecer o caso, porque as matérias relacionadas com os Serviços de Informações estão a coberto do Segredo de Estado e a Assembleia da República não tem meios legais para ultrapassar a invocação do Segredo de Estado por parte do Governo, estamos perante dois problemas graves: a potencial impunidade dos Serviços de Informações quando actuam à margem da lei e a ineficácia do Parlamento enquanto órgão fiscalizador da actuação do Governo.
A discussão sobre esta questão está já agendada para o próximo dia 8, quando for aqui discutido o projecto de lei do PCP sobre a fiscalização do SIRP e o acesso da Assembleia da República ao Segredo de Estado. Não queremos antecipar essa discussão, mas temos de chamar a atenção para a grave responsabilidade que impende sobre o Parlamento nesta matéria.
O que hoje queremos deixar muito claro é que as acusações que hoje existem quanto a actuações ilegais do SIED são gravíssimas e não podem deixar de ser investigadas em sede política e em sede criminal; que os cidadãos têm o direito de saber o resultado dessas investigações e as suas consequências; que a Assembleia da República deve usar todos os meios de que dispõe para esclarecer este caso até ao fim e tem o dever de criar mecanismos legais que permitam o cabal exercício dos seus poderes constitucionais; e que a saúde do regime democrático exige garantias suficientes de que os Serviços de Informações se conformem com a lei e não incorram em práticas violadoras dos direitos constitucionais dos cidadãos.
Disse.

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