sábado, 7 de julho de 2012

Não à destruição do Serviço Nacional de Saúde



Para que se saiba por que vai haver Greve dos Médicos...
Artigo de opinião escrito pelo médico Carlos Seabra, publicado no Jornal de Aveiro onde trabalha:
"A destruição do SNS: a experiência de um hematologista de um hospital distrital
Sou médico desde 1994, especialista em Hematologia Clínica e em Patologia Clínica. Trabalho no Hospital Distrital da minha cidade natal desde 2003, onde sou responsável pela consulta de Hematologia desde 2006. Durante a minha formação trabalhei no Dana-Farber Cancer Institute (EUA), e em Salamanca.
Nunca foi tão difícil fazer o meu trabalho como agora.
O Serviço Nacional de Saúde (SNS), a que pertence o meu hospital, está em colapso, os profissionais de saúde estão a sofrer um violento ataque aos seus direitos laborais e os cidadãos estão a perder o direito a aceder aos cuidados de saúde prestados pelo Estado.
Os médicos, particularmente os mais jovens, enfrentam o desemprego, a perspectiva de trabalho precário e mal remunerado, a ausência de carreiras médicas, horas de trabalho excessivas, em instituições mal equipadas, com escassez crónica de pessoal e meios. Muitos emigram, deixando o país sem profissionais diferenciados. Os que ficam estão cada vez mais cansados e desmotivados.
A medicina privada, acessível só aqueles que a podem pagar, é dominada pelas seguradoras e hospitais privados dos grandes grupos económicos, que ditam as regras da política de saúde no nosso país.
As administrações e direcções clínicas dos nossos hospitais e centros de saúde, politicamente nomeadas e instrumentalizadas, muitas vezes arrogantes e incompetentes, tomam decisões locais surpreendentes, danosas para a população e os serviços que dirigem, esquecendo a primeira obrigação do SNS, que é a de proteger a saúde da população.
O ataque ao SNS não é recente mas atinge, com a política neoliberal do actual governo, uma intensidade espantosa, que é sentida diariamente no meu hospital e na minha consulta. Por um lado, os doentes que trato começam a ter que pagar a utilização do SNS e a perder os apoios do estado aos tratamentos, exames diagnósticos e ambulâncias. Por outro, existe um desinvestimento nas estruturas materiais e humanas do próprio SNS, que se traduz em menor capacidade de prestar cuidados de saúde.
Como bom exemplo do que afirmo, recordo um casal idoso, o senhor com leucemia aguda em tratamento de suporte com prognóstico reservado, cuidado pela esposa, também doente com policitémia vera. Fui seu médico enquanto lutaram por conseguir transporte para as minhas consultas, para comprar os medicamentos que receitava, e para obter isenção das taxas moderadoras, agravadas pelas regras recentes (por exemplo: convocar uma junta médica custa 50 euros). Preocuparam-se com tudo isto enquanto enfrentavam a possibilidade de um desfecho fatal, porque neoplasias hematológicas não conferem isenção automática. De facto o meu doente pagou uma consulta no seu centro de saúde poucos dias antes de falecer.
Lembro-me, também, de um doente com um síndrome mielodisplásico, sofrendo de Alzeihmer, dependente dos cuidados da sua esposa, que me contou estar a pagar 40 euros pela ambulância que o transporta às consultas e transfusões, que necessita cada 2 semanas. Outra doente, com 91 anos de idade e com anemia refractária, faltou à sua transfusão regular. O hospital recusou apoiar os pedidos de transporte em ambulância porque considerou os seus rendimentos (434 euros por mês) suficientes para pagar os 85 euros de cada deslocação. A doente necessita de 2 ou 3 transfusões mensais.
Um doente, com um linfoma agressivo que necessitou de tratamento imediato, explicou-me, mais tarde, que o transporte de ambulância para poder vir à sua primeira sessão de quimioterapia não foi possível por resposta tardia do hospital.
Cada vez mais doentes faltam a consultas e tratamentos, por dificuldades com o transporte ao hospital, com consequências óbvias para a sua saúde. Os bombeiros sofrem a falta de apoio económico do estado, e os hospitais e centros de saúde limitam o acesso ao transporte gratuito ou comparticipado de doentes. Em muitos hospitais, rendimentos superiores a 400 euros por mês são suficientes para não ter ambulância, em contradição aparente com a lei.
Um doente com mieloma múltiplo em progressão, com lesões ósseas, dor intensa, incapacidade motora, anemia severa e insuficiência renal, que vive com a esposa, sua única cuidadora, viu o pedido de complemento por dependência recusado por uma comissão médica da Segurança Social, que o considerou não dependente. Foi informado que, se recorresse desta decisão e perdesse, pagaria os custos do recurso. Também viu negado o direito a isenção por incapacidade económica, porque os rendimentos do seu agregado familiar (dele e da esposa) são de 670 euros, superiores, portanto, aos 600 e picos euros que justificam isenção. As contas foram feitas contando com o 13º e 14º mês (multiplicaram a reforma mensal por 14 e dividiram por 12). O apoio da Segurança Social aos doentes está a diminuir significativamente e muitas comissões médicas tomam decisões estranhas que só podem ser entendidas como forma de limitar gastos. Muitas leis recentes são injustas e limitam a possibilidade de os mais desfavorecidos reivindicarem os seus direitos.
Há doentes a quem cobram parte das análises pedidas pelo seu médico, porque não estão relacionadas com a patologia que motiva a isenção. Exames complementares de doentes com diabetes, por exemplo, mesmo que ligados a potenciais complicações, não estão abrangidas pela isenção de taxas moderadoras. Com a nova lei pode ser-se isento para uma só doença e não para outras, mas na medicina a saúde é um todo, e tudo está, quase sempre, relacionado.
Outro dos grandes problemas diz respeito ao acesso ao tratamento, particularmente ao farmacológico.
As barreiras colocadas à prescrição médica estão a condicionar os planos terapêuticos, que deixam de ser escolhidos exclusivamente por razões científicas.
O modelo de prescrição hospitalar, aplicado a nível nacional, é moroso, irracional, afasta do médico a decisão terapêutica, coloca barreiras burocráticas à prescrição e impede muitas vezes os doentes de receberem o tratamento adequado em tempo útil. Esta situação tem grande impacto em Hematologia, porque os Serviços existentes estão sobrecarregados e a esta é uma área de grande avanço cientifico em que novos fármacos, mais eficazes, têm surgido com frequência, sempre com custo económico elevado.
Um dos problemas diz respeito ao chamado resumo das características do medicamento (RCM) que é falsamente considerado como indicação científica de um fármaco (quando não o é de nenhuma forma). Outro está relacionado com o facto de as prescrições necessitarem frequentemente de aprovação de uma comissão de farmácia terapêutica em cada hospital, que não tem competência para o fazer. De facto, os elementos da comissão, não especialistas, tomam decisões avulsas em áreas de conhecimento altamente diferenciado, que apenas deveriam ser tomadas por organismos especializados de nível nacional ou mesmo internacional. Agravando o erro, estas comissões de farmácia reúnem mensalmente, quando as doenças (hematológicas ou outras), não se condicionam por essa periodicidade, necessitando frequentemente de tratamento imediato.Em muitos hospitais do país, os doentes hemato-oncológicos são inicialmente tratados inadequadamente porque as autorizações (difíceis de obter) não acontecem em tempo útil.
Poucos debatem o sistema internacional de patentes e propriedade intelectual, que permite que as grandes multinacionais farmacêuticas estabeleçam unilateralmente preços exorbitantes para os novos fármacos. Estabeleceu-se uma ideologia desumanisada da medicina, e há países onde pura e simplesmente não se tratam algumas doenças, como se elas não existissem.
A história e a situação actual da Hematologia no meu hospital são um exemplo deste brutal ataque ao SNS. Como único hematologista da instituição, sou responsável pela consulta, hospital de dia, e apoio desta especialidade a outros Serviços. É particularmente relevante, em volume de trabalho, o apoio, regular e quotidiano, ao internamento e consulta de Medicina Interna, e ao Serviço de Urgência.
A consulta de Hematologia iniciou a sua actividade em 2006. Desde então tem crescido continuamente. O tempo de espera inexistente inicialmente é agora de 2 anos, o que revela a esmagadora necessidade de apoio hematológico na região. Apesar deste facto não podemos ser acusados de falta de produtividade. Faço 2000 consultas (uma média de 23 doentes por dia de consulta) e 1000 sessões de tratamento em hospital de dia por ano, tendo diagnosticado e assistido 600 doentes com patologia hematológica primária desde o inicio da consulta. Os doentes hematológicos são muitas vezes portadores de doenças crónicas graves e necessitam de consultas frequentes ao longo de grandes períodos. Todos são tratados no meu hospital, excepto quando a natureza da sua doença obriga a terapêutica mais agressiva em regime de internamento.
Desde que trabalho na instituição, apresentei a todas as administrações e direcções um plano para melhorar a capacidade de assistência em Hematologia, que sempre incluiu a contratação de, pelo menos, mais um hematologista. Paradoxalmente, todas as administrações, incluindo a actual, de uma forma ou de outra, ameaçaram terminar a consulta de Hematologia.
Regresso, assim, à questão do acesso aos fármacos para os doentes hematológicos, porque é essa a principal explicação para a existência da Hematologia no meu hospital ter sido, e estar a ser, posta em causa. Os medicamentos nesta área são muito caros, e a Hematologia foi responsável em 2011 por mais de 10% dos gastos farmacêuticos.
Fechar a Hematologia é uma forma óbvia de cumprir metas orçamentais, se se ignorar que tal medida diminui a capacidade assistencial e prejudica a população. Essa opção ignora o volume crescente de pedidos de consulta e de solicitações internas, que ultrapassam a nossa capacidade de resposta. Sucintamente, não temos recursos humanos e logísticos para assistir tantos doentes e a Administração quer cortar custos limitando assistência. No entanto, e seguindo o espírito consagrado na nossa Contituição, a solução para este problema, salvaguardando a saúde hematológica dos cerca de 500.000 habitantes servidos pelo hospital onde trabalho, é simples: é preciso investir na Hematologia.
É esta necessidade de utilizar recursos económicos, e a recusa da Tutela em investir no SNS, que explica que esteja a ser posta em causa a existência de especialidades como Hematologia, Oncologia e outras, em hospitais distritais como o meu. Para os decisores políticos, fechar estes Serviços parece ser a forma óbvia de poupar dinheiro. Contudo, a centralização dos cuidados nestas áreas prejudica claramente a população. Os Serviços nos hospitais centrais já estão a funcionar para além das suas capacidades, como as listas de espera para consultas e tratamentos ( transplantes por exemplo), o demonstram. E a distancia geográfica, aliada às restrições no apoio ao transporte de doentes e ao empobrecimento da população, provoca uma barreira que vai afastando os doentes dos cuidados que necessitam. Na realidade, pelas medidas que defende, pode ficar-se com a sensação de que essa é a intenção do governo. Uma coisa é certa, o cancro é uma doença muito frequente: 1 em cada 2 homens e 1 em cada 3 mulheres vai desenvolver cancro ao longo da sua vida. A proximidade e acesso fácil a cuidados de saúde dedicados, melhora os resultados obtidos. Uma doença tão comum justifica um plano nacional bem pensado em que participem as Sociedades, Colégios e principais Serviços nacionais de cada especialidade. Não deixo de ter inveja quando visito o website da rede oncológica de Ontário, no Canadá. Tudo parece tão fácil...
Vivemos tempos difíceis, mas nós, os médicos, não nos devemos demitir de sermos participantes activos na defesa da boa prática da profissão."

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